La condena por el Tribunal supremo español al juez Garzón, está generando toda una serie de intervenciones de personalidades muy relevantes, en especial en América Latina. Si en la anterior entrada era Zaffaroni, en esta ocasión le toca a Tarso Genro, gobernador de Rio Grande do Sul y una de las personalidades más emblemáticas de la izquierda latinoamericana y brasileña. El texto está en portugués, pero su comprensión es muy clara para los hispano hablantes. Garzón es la metáfora de una democracia enferma e insensibilizada, con una fuerte degradación de las instituciones centrales del Estado de derecho.
Garzón e a metáfora de Bergman
Tarso Genro
No filme O ovo da serpente, de Ingmar Bergman, dois desempregados aceitam trabalhar numa clínica que faz experiências com seres humanos. É a Berlim da falência da República de Weimar. A decomposição do Estado está retratada na dissolução da moeda: seu valor já é medido pelo peso do papel em que ela é impressa. O filme de Bergman mostra a gênese do nazismo, na consciência dos humanos degradados. Eles preparam-se para aceitar, no nazismo, o mito da redenção pela raça e assim ver o outro como uma “coisa”, para que a sua própria pequenez possa imperar sem contrastes. É o ovo da serpente, a célula do mal em gestação, a expressão do processo vital, que prepara o seu ataque ao coração da democracia, depositado no corpo da Constituição de Weimar.
A condenação unânime, pela Sala Penal do Tribunal Supremo, do magistrado Baltazar Garzón a onze anos de inabilitação - que equivale à sua expulsão da magistratura da Espanha - é também um fato político marcante da crise europeia. Trata-se de um forte sinal de degradação das instituições do Estado de Direito, no âmbito de um país importante da União Europeia. Garzón teve a sua carreira marcada pelo combate ao terrorismo do ETA, combate à corrupção no governo Felipe Gonzáles - depois de ter sido seu Ministro da Justiça - e no governo Aznar. Combateu a corrupção no sistema financeiro espanhol e global, e processou - através dos mecanismos de persecução criminal de Justiça Universal - assassinos como Pinochet e torturadores a soldo de várias ditaduras.
Conheci Garzón na década 1990. Como advogado tive a honra de lhe entregar documentos, em Madri - em reunião formal na Sala Penal que ele presidia na “Audiência Nacional” - que comprovavam o assassinato de um brasileiro pela ditadura chilena. Na oportunidade, ele presidia investigações que buscavam responsabilizar, pela tortura e morte de nacionais espanhóis, oficiais chilenos da temível agência de “seguridad” da ditadura, a famosa Dina.
Sua condenação não ocorreu, na verdade, por ter determinado a escuta de conversas entre advogados e criminosos, na descoberta de uma das maiores redes de corrupção da administração pública do país, que chegou a quadros de primeira linha do Partido Popular, hoje no governo, na Espanha. Foi, principalmente, um claro revide do franquismo ainda remanescente no estado espanhol, porque Garzón ousou abrir investigações sobre chacinas e assassinatos em massa, cometidos pelos vencedores da Guerra Civil.
O Estado de Direito e os poderes que o compõem estão sob ataque na Europa. A condenação de Garzón tem um efeito devastador sobre o senso comum democrático, porque reduz o grau de confiança do cidadão comum, tanto na política quanto nas instituições forjadas pela democracia. É o ovo da serpente ibérico. Este julgamento, combinado com a proibição do referendo sobre os ajustes econômicos na Grécia - ditados de fato pelo Banco Central alemão - e os deboches do charlatão Belusconi sobre o seu próprio poder Judiciário, quando no poder, são sintomas de uma crise. Vinculam o ajuste econômico europeu a um “ajuste político”, que faz a democracia europeia transitar do autoritarismo economicista sem política para o autoritarismo político com chancela judicial.
Por que devemos falar sobre isso? Porque também estamos atravessando um “ajuste político” no nosso país. Neste, os três Poderes de Estado – Legislativo, Executivo e Judiciário - estão sob permanente assédio de denúncias, que contêm tanto verdades, como meias verdades, assim como suposições transformadas em informação. Isso é o excesso de democracia, que é bom porque só a democracia aceita excessos. E é bom porque, mesmo que muitas denúncias sejam infundadas e muitas informações sejam, inclusive, deliberadamente falseadas por motivos de preferência política, só assim, no dia claro do debate - mesmo que desigual - forja-se uma consciência democrática verdadeira. Devemos falar sobre isso também por outros motivos. A nossa democracia é ainda mais tenra que a espanhola, mas nossas instituições de Estado - na síntese - têm dado claras demonstrações de vitalidade. Devemos, então, festejar as coisas boas, pois caso não o façamos ficaremos apenas com os erros ou supostos erros, que nos amargam todos os dias.
Nesta amargura, justificada ou não, deixaremos de lembrar que o nosso país e todas as suas forças sociais, políticas e institucionais têm construído uma boa democracia e um país melhor. Isso está retratado em caso recente, quando o STF debateu sobre poderes do Conselho Nacional de Justiça, com argumentos que fizeram honra à Justiça brasileira. Foi um caso de grande importância e repercussão para o futuro, pois penso que além de uma decisão correta, por maioria, os argumentos dos votos, vencidos e vencedores, pautaram-se pela defesa do garantismo democrático e da transparência.
Nem todos gostam de todas as decisões do Supremo. Muitos de nós divergimos, jurídica e politicamente, de muitas delas. Ainda bem que isso ocorre, pois se a divergência é fundamentada e de boa-fé, ganha a cultura jurídica democrática da nação. O ovo da serpente está no ninho do Tribunal Supremo de Espanha, com a condenação de Garzón. Não está no nosso Supremo Tribunal Federal. Não estar lá é motivo de orgulho e júbilo para todos os brasileiros.
Governador do Rio Grande do Sul
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